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Foto do escritorEvandro Debochara

Assista ao livro, leia o filme: a criação do Dicionário Oxford


A elaboração do Oxford English Dictionary tem uma história cabulosa protagonizada por duas figuras muito interessantes: o primeiro, filólogo autodidata escocês, foi o editor do dicionário por mais de 30 anos, até sua morte; o segundo, ex-capitão-cirurgião do exército dos EUA, ofereceu-se como voluntário e se tornou o maior e mais importante colaborador dessa obra de referência. Este se comunicava com o dicionarista exclusivamente por meio de cartas que levaram milhares de citações literárias para abonar, fundamentar e enriquecer incontáveis verbetes. Eles só se conheceriam pessoalmente muitos e muitos anos depois, ocasião em que o lexicógrafo fez uma inusitada descoberta: seu grande e erudito colaborador era um esquizofrênico internado em hospício, condenado por assassinato.


Talvez a história real de O professor e o louco não seja tão atrativa para o público em geral, mas o livro é prato cheio para amantes de dicionários, da lexicografia ou curiosos por palavras, pois, além de descrever a dureza que era a rotina de um dicionarista – James Murray tentava concluir mais de 30 verbetes por dia, mas, às vezes, palavras como approve tomavam sozinhas quase um dia inteiro –, registra curiosidades sobre questões linguísticas que atravessaram séculos, como a polêmica em torno do correto significado de protagonist (que, segundo autores mais rigorosos, só poderia ser usado de forma correta no singular), bem como casos etimológicos fascinantes e relatos de como os clássicos literários embasaram as datações da origem de muitos vocábulos. A adaptação cinematográfica, O gênio e o louco, lançada em 2019, não é, obviamente, tão rica e aprofundada assim, mas (apesar de massacrada pela crítica) consegue ilustrar bem vários fatos e fazer um apanhado honesto do que é apresentado no livro.



Interessados em debates linguísticos terão um déjà-vu ao conferir as controvérsias sobre norma culta e variação linguística rolando na Europa do século XIX. Durante as reuniões que definiriam o projeto editorial da obra, vê-se o embate entre os membros mais puristas da elite acadêmica – que exigiam um dicionário castiço e depurado, com regras rigorosas, estritas e bem definidas, sem variantes estigmatizadas e livre daquilo que chamavam de ‘ofensas’ à língua – e outros, filólogos mais esclarecidos, que demonstravam a mesma consciência crítica e lucidez dos linguistas de hoje. Em meio a uma dessas tretas na Universidade de Oxford, Frederick Furnivall, cocriador do dicionário, peita um purista, replicando um comentário deste:


“Todas as palavras da língua são válidas. Velhas ou novas, obsoletas ou robustas, de origem estrangeira ou doméstica. O livro deve compilar cada palavra, cada nuance, cada distorção etimológica e cada citação ilustrativa possível de cada autor inglês.”

E isso ia ao encontro da regra que o editor-chefe Murray havia estabelecido: toda e qualquer palavra era um verbete em potencial. Para um projeto editorial dessa natureza – que levou 70 anos para ser totalmente concluído –, ele propôs a ajuda de vários voluntários que teriam seus nomes registrados na publicação como colaboradores, sendo o presidiário louco, William Minor (interpretado no longa por Sean Penn), o de contribuição mais notória e poderosa, a ponto de levar o editor a afirmar que “os últimos 400 anos foram definidos só pelas citações dele”.


Assim como no livro, o filme (cuja realização era um antigo sonho do ator Mel Gibson, que interpreta o editor) tem três protagonistas: o lexicógrafo, seu culto e esquizofrênico colaborador e o próprio dicionário. Recomendo tanto o livro quanto o filme principalmente no caso você sofrer de lexicomania, ou ser profissional das Letras, ou amante de tudo relacionado a palavras... ou só uma pessoa bem curiosa mesmo.

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