top of page
Foto do escritorEvandro Debochara

Assista ao livro, leia o filme (II): Desmundo (1996/2002)

Esse romance histórico traz uma singularidade fascinante, já que a autora – a ex-atriz, poeta e romancista Ana Miranda – se baseou em obras de referência antiquíssimas e modernas especializadas na história, em costumes e até em usos linguísticos do século XVI (cartas portuguesas, manuais de tupi antigo, além de livros de Luís de Camões, Gil Vicente, Hans Staden, Câmara Cascudo, Sérgio Buarque de Hollanda e vários historiadores brasileiros e portugueses) para recriar toda a atmosfera da época e contextualizar a história vivida e contada pela narradora-personagem, Oribela, uma órfã portuguesa enviada pela rainha de Portugal para o Brasil junto com outras órfãs para se casarem compulsoriamente com desconhecidos “cristãos” que aqui habitavam.


Os arcaísmos, plebeísmos e tabuísmos da época estão presentes em cada página – quase em cada linha –, alguns possivelmente decifráveis, outros bem obscuros: “eramá” ( = em má hora), “samicas” ( = talvez, quem sabe), “todalas” ( = todas as), “fideputa” ( = sim, você já entendeu), “fremosa” ( = formosa), “pardeus!” ( = por Deus!, realmente), “tamalavez” ( = um pouco, um tanto, apenas, de algum modo, dificilmente), “boceta” ( = caixa pequena; só adquire sentido chulo séculos depois), “cafre” (negro) etc. Há trechos e frases que parecem inteiramente extraídos de falas do teatro de Gil Vicente. Ter por perto um dicionário de português arcaico ou uma gramática histórica pode ser muito útil... ou necessário.


É prazeroso também deduzir e descobrir, aqui e ali, fatos históricos, aspectos da vida social e privada, situações íntimas e insinuações (às vezes vulgares e/ou engraçadas) a partir da forma peculiar como Oribela percebe, descreve e narra as coisas. A língua arcaica da personagem-narradora é uma das essências da obra, o que confere personalidade, espirituosidade e encanto à protagonista.


Enquanto o livro é uma viagem pelo passado da escrita, o filme é um passeio pelo passado oral. Um das coisas que mais impressionam na versão cinematográfica de “Desmundo” é o minucioso trabalho de adaptação dos diálogos para o português do século XVI.


No filme, o vocabulário arcaico se torna ainda bem maior e mais rico que o do livro: “acó” (aqui), “seêncio” (silêncio), “non berulhes” (não faça barulho), “nemigalha” (nada, pouca coisa), “negros” (índios), “creimar” (queimar), “sobacos” (sovacos), “baca” (vaca), “fror” (flor), “froles” (flores), “todalas” (todas as), “defensão” (defesa), “ofensão” (ofensa), “dixer” (disse), “conhocer” (conhecer), “é cerca” (é perto), “recevuda” (recebida), “abondas” (muitas), “aquesta” (esta), “Nam fije nada” (Não fiz nada), “sobolos” (sobre os) etc.


Além disso, são notáveis algumas construções peculiares, como a curiosa dupla negação, ainda existente na língua, mas com outros usos peculiares naquele tempo: “Deus nunca non perdoa, padre” (Deus tudo perdoa, padre), “nenhum nam” (ninguém mais); e o emprego do verbo “haver” como o principal verbo para expressar posse, no lugar do verbo “ter”: “Hás de fome?” (Tens fome?); “Essonhava que os marujos haviam pés de bode” (Sonhei que os marujos tinham pés de bode).


Toda essa reconstituição linguística foi fruto de pesquisa e conhecimento acadêmicos: o roteiro foi mandado para o linguista Helder Ferreira (USP) a fim de que ele fizesse a versão dos diálogos do roteiro para o português arcaico, baseando-se em estudos de Said Ali, Carolina Michaëlis, Mattos e Silva, em peças de Gil Vicente (nas quais a autora do livro também se baseou) e até nas primeiras gramáticas do português (Fernão de Oliveira, João de Barros), fontes que forneceram informações sobre o português não apenas escrito, mas também oral, e também sobre dialetos.


Foi um trabalho tão meticuloso que, para reconstrução de uma língua hipoteticamente falada da época, o linguista ainda teve a sacada de pesquisar em textos antigos ocorrências em que o autor cometia erros (em relação aos padrões escritos cultos de seu tempo) que transparecem as marcas do seu português falado (“drento” em vez de “dentro”, “duda” por “dúvida”, “corgo” por “córrego”, “fideputa”, “ermã”, “deferência” por “diferência”, “deze” por “dez”, “chea” por “cheia” etc). Assim, a adaptação arcaica das falas dos atores teve tratamento não só lexical, mas também sintático e fonético-fonológico.


Infelizmente, a protagonista perde muita força no filme, uma vez que deixa de ser narradora; além disso, o final do livro tem uma ambiguidade fascinante que o longa não proporciona. Mesmo assim, recomendo ambos.

0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo

Comments


bottom of page