Apesar de dedicado a uma pesquisa e a um registro tão amplos do léxico do português brasileiro – e, portanto, da diversidade linguística nacional, com seus usos informais e regionalismos – e de ter mandado indiretas em vários verbetes para autores mais conservadores e rigorosos (“puristas maníacos”, “mania de certos puristas” etc.), Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910-1989) era, pessoalmente, bastante patrulhador e implicante com a fala alheia, cagando regras mesmo em conversações. No prefácio que escreveu para o livro Por trás das palavras, de Cezar Motta, publicado pela Máquina de Livros, Beto Sales revela:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
“Implacável vigilante do bom uso da língua, Aurélio se tomava de uma sinceridade cortante ao ser levado a corrigir alguém que, por descuido ou ignorância, cometesse um erro de português. Em qualquer circunstância, gostasse ou não a pessoa, a correção do Mestre vinha formal e pedagógica. Isso lhe custou alguns desconfortos [...].”
“Na última vez que vi o Mestre, fui com meu pai visitá-lo no hospital, sua derradeira internação. Minado pela luta contra o mal de Parkinson, o Aurélio que estava ali na cama em nada lembrava a vibrante presença do homem que aproximou o brasileiro de sua língua como jamais alguém sonhara fazê-lo. Mal balbuciava muxoxos guturais. De súbito, entra no quarto a médica que vinha acompanhando seu delicado quadro daqueles dias, e triunfalmente cumpre à risca o rito de mostrar bom humor diante de nossa patética impotência: ‘Grande Mestre, eu vim aqui só pra LHE VER!’. Aquele uso errado da transição do verbo 'ver' era a centelha para saber se de fato o Mestre ainda guardava com o nosso mundo algum elo. Olhei para a cama e vi Aurélio se retorcer com incrível dificuldade, seu tronco e braços enrijecendo como a preceder um movimento brusco que lhe seria impraticável, sua boca abrir além do que a letargia da doença lhe permitia, e num esforço brutal sussurrar: ‘VÊ-LO, VÊÊÊ-LO’.”
Quanto ao caso em si, até gramáticos como Celso Luft reconhecem que, na língua falada, o objeto direto ‘o’ (‘a’, ‘os’, ‘as’) aparece na variante ‘lhe(s)’, por motivos de coerência estrutural (eu/me; tu/te; ele, você/lhe) e de clareza e audibilidade (‘o vi’/‘ouvi’; ‘vi-o’/‘viu’; ‘vi-a’/‘via’); quanto ao comportamento social, nem mesmo Napoleão Mendes de Almeida – provavelmente o mais conservador, rigoroso e purista gramático do país – apresentava atitude tão intolerante assim em conversas, conforme ele próprio declarou em entrevista dada à revista Veja (1993):
“Eu respeito. Não vou interromper uma conversa para dizer ao interlocutor que o certo é dizer ‘nós vamos’, e não ‘nós vai’. A verdade é que, em termos de vocabulário, há regionalismos muito interessantes. Um dia eu estava em Belém e pedi uma informação na rua, sobre onde ficava tal escola. O sujeito me disse que era fácil, que era só tomar uma ‘sopa’, aquela ‘sopa’ que estava logo ali junto ao muro. Eu me espantei. Não sabia, mas está lá no dicionário – sopa é a jardineira, o ônibus local.”
MORAL DA HISTÓRIA:
1. Recomendar a norma culta não exige ser intransigente nem constranger as pessoas;
2. A cagação de regra pode vir de quem menos se espera.
Comments