A essa altura dos fatos linguísticos, parece desnecessário a gente ainda ter que continuar afirmando e reafirmando que “risco de vida” é expressão legítima e correta. No entanto, basta um curto passeio por sites, blogs e redes sociais pra notar que ainda há quem continue corrigindo e ensinando que não se pode dizer isso, que a expressão “não faz sentido” etc. Por isso convidamos os apresentadores Adam Savage e Jamie Hyneman, que fazem aquilo que todo sabichão cagador de regra deveria fazer (mas muitas vezes não faz): leem, consultam, estudam e pesquisam obras de referência contemporâneas para testar a validade de rumores gramaticais. E lá vamos nós desmitificar a cagação segundo a qual “risco de vida”, consagrada em clássicos literários, grandes canções da MPB e até no Código Civil brasileiro, é expressão “errada”.
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O escritor Sérgio Rodrigues – com experiência de duas décadas como consultor linguístico de jornais e revistas – parece ter identificado a origem da implicância com essa expressão:
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“[...] professores de português que exerciam o cargo de consultores em redações conseguiram convencer os chefes de determinados jornais e TVs de sua tese tolinha. 'Como alguém pode correr o risco de viver?’, riam. Era um equívoco. Julgavam ter descoberto uma agressão à lógica embutida no idioma, mas ficaram na superfície do problema, incapazes de fazer uma análise linguística mais sofisticada e compreender que risco de vida é risco para a vida, ou seja, risco de (perder a) vida. O que, convenhamos, nem teria sido tão difícil.” (Viva a Língua Brasileira!, 2016, p. 130)
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De fato, a partir dos anos 90, disseminou-se, em meios diversos – como os programas de TV e CD-ROMs do professor Pasquale, que hoje em dia já nem condena mais a expressão –, a ideia de que “risco de vida” era um erro a ser evitado. Na verdade, o erro estava apenas em não consultar gramáticas nem obras de referência...
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Bechara (Dicionários de Dúvidas, 2018, p. 346) e Sacconi (Não Erre Mais!, 2018, p. 185) exploraram o passado remoto da língua para constatar, nos primeiros dicionários da língua portuguesa (séc. XVIII), “pôr-se a perigo de vida”. Cegalla (Dicionário de Dificuldades, 2012, p. 104) diz que “correr risco de vida” é “expressão usual”, identificando expressões como “perigo de vida” em escritores clássicos, o que vai ao encontro do que diz Bechara (2018, p. 346): “Machado de Assis preferia perigo’ ou risco de vida’”.
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Vários autores apontam a fragilidade do critério de correção baseado na lógica que certos revisores, professores e caga-regras pedantes gostam de usar nesses casos: “Nem sempre o que é racional, lógico, acaba a braços com a língua, que também agasalha risco de vida, diz Sacconi em Não Erre Mais! (2018, p. 185). É impressionante que um fato linguístico tão óbvio continue passando batido do raciocínio desse povo: é o uso, e não a lógica, que legitima e consagra na língua culta diversas expressões idiomáticas. Por também entender isso, até Napoleão Mendes de Almeida, o mais conservador entre os nossos gramáticos, fecha com toda essa galera aí de cima:
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“‘Fulano está em perigo de vida’ quer dizer ‘está em risco de morrer’. Podemos dizer também, sem receio de erro: ‘Fulano está em perigo de morte’, que o sentido será o mesmo. Podemos ainda variar essas expressões, substituindo ‘perigo’ por ‘risco’ e, ainda assim, idêntico será o significado.” (Dicionário de Questões Vernáculas, 1981, p. 231)
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Não foi à toa que até o professor Pasquale, que durante algum tempo ainda relutava, dizendo ser “mais aconselhável empregar ‘risco de morte’” (Folha de São Paulo, 2001), passou finalmente a reconhecer que “o largo uso da expressão ‘risco de vida’ é motivo mais do que suficiente para que a aceitemos pacificamente” (Dicionário da Língua Portuguesa, 2009, p.508).
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Pra concluir, um fatality do Bechara:
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“Condenar ‘perigo de vida’, ‘risco de vida’ em favor de ‘perigo de morte’, ‘risco de morte’ é empobrecer os meios de expressão do idioma – que conta com os dois modos de dizer –, além de desconhecer a história do seu léxico, em nome de um descartável fundamento lógico.” (Dicionário de Dúvidas, 2018, p. 346)
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Com isso, temos MAIS UM MITO DERRUBADO!
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Até o próximo episódio!
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