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Foto do escritorEvandro Debochara

Caçadores de pleonasmos ignoram fatos reais da língua

“Fato” é palavra dicionarizada com o significado de “ação ou coisa feita”, “realidade”, “o que realmente existe”, “verdade”. Apegados a esse sentido (como se fosse o único possível e utilizável), muitos revisores, professores, corretores de redação, concurseiros, consultores linguísticos e leigos em geral raciocinam que em nenhuma circunstância se pode adjetivar esse substantivo com a palavra “real”.


Autores frequentemente citados como exemplo de língua correta (Machadão, Rui Barbosa etc.) faziam uso de “fato real”. Durante séculos de língua portuguesa, ninguém nunca perdeu tempo implicando com isso. No entanto, hoje em dia, é possível chutar que dez entre dez listas de “pleonasmos viciosos” compartilhadas nas redes registrem essa expressão. Mas existe mesmo razão para essa condenação? NÃO, e isso só acontece porque vários desses apontamentos de pleonasmos como viciosos são fruto de precipitação, rigor desnecessário e pouca reflexão.


Hoje em dia, nenhuma pessoa pode dizer “baseado em fatos reais” que já é logo enquadrada como viciada e recebe ordem de prisão: “Ora, todo fato é real... caso contrário não é fato”, argumentam os logicistas. Não! NEM TODO FATO É (NECESSARIAMENTE) (CONSIDERADO) REAL, e é realmente estranho que esses devotos fervorosos da lógica NUNCA tenham refletido, por um só minuto, que um fato pode ser qualificado como fictício, suposto, hipotético, improvável, imaginário, inventado, irreal etc., ou seja, referido de várias formas distintas do sentido de “real”. Se ao substantivo “fato” podem ser dadas essas qualificações – especificando-se o tipo de fato ao qual se deseja referir –, fica claro que associar “fato” com a palavra “real” é um uso gramaticalmente facultativo... ou mesmo muito apropriado e necessário, dependendo do contexto.


Provavelmente nada disso será suficiente para convencer o logicista, que poderá não se dar por vencido e tentará contra-argumentar: “Ora, se é inventado ou fictício, não é um fato!”; “Um fato irreal não é um fato, é uma mentira ou uma hipótese!”. Ora, que dificuldade alguém teria em entender que uma mentira pode ser descrita como “fato irreal”, que uma obra literária traz “fatos fictícios”, “imaginários”, que uma teoria aborda um “fato hipotético”, enfim, todos eles distintos da ideia básica de fato?


Mesmo em contextos em que “real” se mostre descartável, ainda assim a adjetivação – a critério de quem redige – se mostra válida e correta. Não é à toa que, enquanto os logicistas ficam de frescura, cheios de nove-horas com essa expressão, os gramáticos – que eles deveriam ler... – a utilizam A RODO:


1) NAPOLEÃO Mendes de Almeida:

“O presente é também empregado para indicar uma ação habitual, constante, um FATO REAL, uma verdade” (Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 1999)

“A distinção, repetimos, está em ela ser FATO REAL, obrigatório, com significação e finalidade precisas na língua húngara” (Dicionário de questões vernáculas, 1981)

“Conjunção temporal que é, poderá levar o verbo para o subjuntivo quando a idéia implicar suposição, eventualidade, futuridade; uma coisa é [...] Lá o indicativo a denotar FATOS REAIS, aceitos, aqui o subjuntivo a indicar uma possibilidade, uma ação talvez contrafeita, e sua consequência.” (Dicionário de questões vernáculas, 1981)


2) ROCHA LIMA:

“A conjunção condicional característica é se, que requer o verbo no subjuntivo (pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito, futuro); mas é lícito trazê-lo no indicativo, quando denota FATO REAL, ou admitido como real, em contradição com outro acontecimento.” (Gramática normativa da língua portuguesa, 2008).


3) CEGALLA:

“factoide. [De facto + -oide.] S.m. FATO REAL ou não, sensacionalista, divulgado para causar impacto na opinião pública e influenciá-la” (Dicionário de dificuldades da língua portuguesa, 2008, p. 166).

“O modo indicativo exprime um FATO certo, REAL, positivo.” (Novíssima gramática da língua portuguesa, 2008)


4) CELSO LUFT:

“Baseando a novela em FATOS REAIS, soube o autor , mediante a técnica e a linguagem , transfigurar artisticamente a realidade.” (Literatura portuguesa e brasileira, 1979)

“Qualquer semelhança com pessoas e FATOS REAIS não passa de mera coincidência – avisam livros de ficção.” (Dicionário prática de regência nominal, 1997)


5) EVANILDO BECHARA:

“[Conjunções] Condicionais: quando iniciam oração que em geral exprime [...] um FATO – REAL OU SUPOSTO – em contradição com o que se exprime na principal.” (Moderna gramática portuguesa, 2019)

“O Indicativo é o modo que normalmente aparece nas orações independentes, e nas dependentes que encerram um FATO REAL ou tido como tal.” (Moderna gramática portuguesa, 2019)

“Nas orações adverbiais usa-se o subjuntivo:nas consecutivas quando se exprime uma simples concepção e não um FATO REAL.” (Gramática escolar da língua portuguesa, 2018)

“Muitas vezes são FATOS REAIS, mas que não estão expressos no texto.” (Gramática fácil, 2018)


6) EDUARDO CARLOS PEREIRA (gramático da primeira metade do século XX): “Narração é a exposição de um FATO, REAL OU IMAGINÁRIO” (Gramática expositiva, 1908)


7) ERNANI TERRA:

“Como substantivo comum, [história] refere-se a qualquer tipo de narrativa, seja de FATOS REAIS, seja de ficção [...]” (1001 Dúvidas de Português, 2017)


8) MARIA HELENA MOURA NEVES:

“Com base na diferença existente, em inglês, entre history e story, defendeu-se, em português, durante algum tempo, que se fizesse uma distinção entre história (para designar narrativa de FATOS REAIS, especialmente os documentados) e estória (para designar narrativa de ficção, folclórica, ou, pelo menos, não comprometida com a realidade” (Guia de uso do português, 2003)


9) JOSÉ CARLOS DE AZEREDO:

“A conjunção ‘se’ introduz geralmente um FATO (REAL OU HIPOTÉTICO) ou uma premissa...”

“[...] regras que constituem o modelo de descrição nos parecem reconhecíveis como dados discretos e bem distintos entre si, os FATOS REAIS do uso efetivo da língua parecem muitas vezes resistir a uma rotulação certeira e bem-sucedida.” (Gramática Houaiss da língua portuguesa, 2021).


10) SAID ALI:

“Que o indicativo é a forma apropriada para exprimir um FATO REAL ou atual em relação ao tempo presente...”

“[...] por meio de oração substantiva que exprima um FATO considerado como REAL, o verbo desta segunda oração se diz...” (Grammatica Historica da Lingua Portugueza, 1921)


11) JOÃO RIBEIRO (Academia Brasileira de Letras):

“[proposições] negativas – aquellas que affirmam NÃO SER O FACTO REAL: Carlos não morreu.” (Grammatica Portugueza, 1912)


Reparem NÃO APENAS nas ocorrências desse emprego, mas em como diversas citações acima fazem usos da expressão com propriedade, dando a devida relevância e pertinência ao adjetivo “real” (“fato real ou suposto”, “fato real, ou admitido como real”; “fato real ou imaginário”). Notem também que, no contexto das outras citações, “real” pode até ser dispensável, mas está ali para reforçar ou enfatizar o que se deseja dizer. E não há problema algum nisso...⠀


É óbvio que as pessoas têm toda a liberdade de empregar apenas “fato(s)” e de nunca usar “fato(s) real(is)”. Só é preciso entender que não estamos diante de um pleonasmo vicioso. A única coisa viciosa aqui é a crença – alimentada por devotos do racionalismo – de que todas as construções vernaculares devem ser subordinadas a uma lógica rigorosa, simplista, enrijecida, restrita e incondicional.


Semana que vem o pelotão está de volta para mais uma batalha... perdida.

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