top of page
Foto do escritorEvandro Debochara

Ensino à distância: o acento da discórdia

“Meu acento, minhas regras. O acento é meu, acentuo onde e como eu quiser”, diz Evanildo Bechara

Brigam os gramáticos, e a discussão ainda está sob julgamento.

(Arte Poética, Horácio, 19 a. C.)


A falta de consenso entre os gramáticos a respeito de vários usos acaba trazendo confusão maior ainda entre os demais usuários do Português – inclusive professores e revisores –, que se orientam por diferentes regras de correção de autores de suas respectivas preferências e afinidades. Em casos assim, convém optar sempre pelas prescrições das obras mais recentes e atualizadas (embora até mesmo entre estas possa haver discórdia) em detrimento das mais datadas (cujas lições podem não corresponder mais à atualidade da língua). Se, mesmo entre o que há de mais atual, o conflito de lições ainda persistir, deve-se adotar o princípio do In dubio, pro libertate (“Na dúvida, há liberdade de uso”, como diz José da Costa Neto, autor do Manual de redação jurídica) e admitir que o emprego é facultativo.


Esse é o caso de diversas locuções adverbiais. Há consenso em torno da acentuação de vários tipos delas (modo, tempo, lugar ou intensidade): à margem, à meia-voz, à maneira, à moda, à noite, à risca, à tarde, à vista, à viva voz, à vontade, às cegas, às claras, às favas, às escuras, às escondidas, às pampas, à(s) pressa(s), às tontas, às vezes, à direita, à esquerda etc. No entanto, existem alguns tipos cujo “a” não recebem acento grave dependendo do gramático. Enquanto Rocha Lima, Said Ali, Celso Luft, Bechara, Celso Cunha, Sacconi e Gama Kury prescrevem a acentuação em locuções adverbiais de instrumento, como em “escrever à máquina”, “escrever à tinta, “escrever à mão”, “fechar à chave”, “ferir à faca”, “ferido à bala”, “receber alguém à bala”, “atirar à queima-roupa”, “matar alguém à fome, “pagamento à vista” etc., Cegalla diz ser preferível não usar acento grave (embora reconheça que muitos autores, visando clareza do enunciado, prefiram acentuar): ”escrever a máquina”, “escrever a tinta”, “escrever a mão, “fechar a chave”, “ferir a faca”, “receber alguém a bala”, pagamento a vista” etc. Já Napoleão Mendes de Almeida condena totalmente a acentuação nesses casos, tratando-a como errada. (Ele é tão caturra que não admite acento nem mesmo em locuções como "à toa" e "à beça"...)

Uma dessas locuções é algo de uma discórdia ainda mais notória: “a distância”, provavelmente em virtude de seu disseminado uso em expressões da atualidade, como “ensino a distância”, “curso a distância” etc. Muitos prescrevem, ensinam, corrigem e usam assim: “Se tal distância for definida / especificada / determinada, use acento grave; caso contrário, sendo vaga ou genérica, não acentue”. Dessa forma recomendam Sacconi e Cegalla, por exemplo. No entanto, outros gramáticos não só reconhecem que a prática de literatos de diversas épocas legitima a acentuação nos casos em que a distância não é definida como também recomendam o acento por questão de clareza:


“Emprega-se o acento grave no ‘a’ quando representa a pura preposição ‘a’ que rege um substantivo feminino singular, formando uma locução adverbial que, por motivo de clareza, vem assinalada com acento grave diferencial, como em: à força, à míngua, à bala, à faca, à espada, à fome, à sede, à pressa, à noite, à tarde, à vela, etc. A locução ‘à distância’ (‘Ao longe ou de longe, de um lugar distante’) deverá, a rigor, seguir esta norma: Ficou à distância./ Ensino à distância; [...] Todavia, uma tradição tem-se orientado no sentido de só usar acento grave quando a noção de distância estiver expressa [...]. A prática dos bons escritores nem sempre obedece a esta última tradição. Valeria uniformizar o emprego do acento grave [e não crase!] como acento diferencial, semelhante ao que já ocorre com as demais locuções citadas.”

(Novo dicionário de dúvidas da língua portuguesa, Evanildo Bechara)


“Na locução ‘a distância’, SEMPRE se pode acentuar o ‘a’: ‘à distância’. [...] ‘Especialistas’ em crase, mas desinformados das tradições querem que seja erro acentuar o ‘a’ quando ‘distância’ é indeterminado (a distância = longe), pois é esse ‘a’ é só preposição [...] Um acento de clareza na preposição ‘a’, para não se confundir como o artigo feminino. Veja ambiguidades: ‘Ficar a vontade no seu lugar’, ‘pintar a máquina’, ‘matar a fome’, ‘receber a bola’, etc., e assim, ‘ver a distância’. O acento grave no ‘a’ desfaz equívocos.’”

(Decifrando a crase, Celso Luft)


“[...] também é usual a expressão ‘à distância’ (com acento grave no ‘a‘) quando não há especificação numérica para a distância. Ocorre que, com o artigo antes do substantivo, e, portanto, com a crase (à), pode-se obter indicação mais segura de que se trata de uma expressão adverbial, e, a partir daí, pode haver maior clareza de significado.”

(Guia de uso do português, Maria Helena de Moura Neves)


Eis um bom exemplo de por que Luft, Bechara, Moura Neves, Piacentini e outros autores defendem o uso do acento grave diferencial para fins de clareza em locuções adverbiais:


Fica, portanto, a critério de cada um optar pelo uso com o qual se acostumou ou se basear na prescrição de sua preferência. Independentemente da escolha, nada muda o fato de que o pensamento gramatical mais moderno NÃO considera errado o acento grave em expressões como “ensino à distância”, “educação à distância” e “curso à distância”.

0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo

Comments


bottom of page