Erro de latim: um crime capital na Roma Antiga
- Evandro Debochara
- 30 de mar.
- 3 min de leitura
Atualizado: 31 de mar.

Herdamos do latim não só o português como também o rigor, a obsessão corretiva, o tradicionalismo, o purismo e a violência que dominavam o ensino da língua-mãe. Se hoje você se queixa de puristas, caga-regras e defensores da “língua pátria” submissos a tradicionalices, acredite: antigamente, em Roma, o negócio era muito mais sinistro.
Conta-se que a tara dos romanos pela gramática surgiu no século II a.C. graças a um acidente: ao visitar a então capital do mundo, o gramático grego Cratos de Malos fraturou a perna ao cair num esgoto a céu aberto e, obrigado a permanecer na cidade por certo tempo, decidiu abrir uma escola por lá para se sustentar. Ao assistirem às aulas de Cratos, vários romanos foram tomando gosto pelo negócio, desenvolvendo sua própria arte de cagar regras com um rigor e um purismo nunca imaginados pelos gregos.
Desde então, a vida dos jovens romanos virou um inferno: ai de quem desviasse de uma só letra ensinada por gramáticos, eruditos e mestres de letras, que ensinavam o latim, explicavam as obras dos grandes literatos da época e desciam o cacete no infeliz que errasse.
Duvida? Em suas Epístolas, o poeta Horácio (65 a.C. – 8 a.C.) menciona seu mestre Lúcio Orbílio Pupilo, a quem chamava de plagosus (“espancador”), o “mestre da mão pesada” que o “ensinava a toque de chicote”. Desse mesmo carrasco, faz menção também outro poeta, Domício Marso, que descreve em sua obra “aqueles que foram feridos por Orbílio com uma vara ou um chicote” (De grammaticis et rhetoribus, Suetônio). Um século depois de Horácio, o poeta Marcial (38-104 d.C.) registra a continuidade dessa prática, citando varas e chicotes de educadores de seu tempo. “Do litterator e do grammaticus são lembradas especialmente duas coisas: sua sádica severidade e sua miséria”, diz Mario Manacorda em História da Educação (2022).
Nem todos os gramáticos latinos eram sádicos ou psicopatas. Quintiliano (35 d.C. – 100 d.C.) começou a criticar essa insanidade, propondo uma campanha contra a surra em alunos, prática amplamente aceita na época. Talvez por isso o historiador Plutarco (46 d.C. – 120 d.C.) tenha admirado o fato de que Sarpedon – mestre de Catão, o Jovem – fosse mais propenso a debater com os alunos do que bater neles.
Não foi à toa, portanto, que, consagrada como uma das sete artes liberais na Roma Antiga, a gramática passou a ser representada na Idade Média como uma mulher instruindo seus alunos com um chicote ou vara na mão, pronta para reforçar a lição por meio da dor.

Considerando o poder, a autoridade e a violência com que os custodes Latini sermonis (“guardiões da língua latina”) ditavam o que era certo e errado na língua, é possível imaginar que, em Roma, imperadores mandassem em tudo – menos na gramática. Pelo menos assim pensavam os doutores em latim. Relata o historiador romano Suetônio que, certa vez, Marco Pompônio Marcelo – gramático purista ultraintolerante, provável encarnação anterior de Napoleão Mendes de Almeida – condenou uma palavra usada pelo imperador Tibério (42 a.C. – 37 d.C.) durante um discurso. Um filólogo ali presente, Ateio Capitão, disse a Pompônio que aquele uso de Tibério era bom latim e que, mesmo que não fosse até então, a partir daquele momento passaria a ser. Pompônio então respondeu: “Pois, tu, César, podes conferir cidadania aos homens, não às palavras”. Teria sido esta a origem da máxima latina Non CÆsar supra grammatícos (“César não está acima dos gramáticos”).
Milênios se passaram, e os gramáticos continuam sendo venerados e temidos como sumos sacerdotes de uma entidade divina, fixa, absoluta, imutável e inquestionável, pregando um evangelho gramatical e ensinando regras como dogmas. Hoje a violência é no máximo simbólica, mas antes também era física e sentida na pele.
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