Bertoldo Ritter Klinger (1884-1969) foi um general de divisão do Exército Brasileiro que ficou conhecido por seu envolvimento em diversos eventos históricos do país, como a Revolta da Vacina (então cadete, aos 20 anos), o Tenentismo, a Revolução de 1930 e o Movimento Constitucionalista de 1932. Durante sua carreira militar, foi punido, preso, exilado e anistiado várias vezes. Foi redator-chefe da revista A Defesa Nacional e chefe de polícia durante o primeiro governo Vargas. Mas o mais notório feito de Klinger foi sem dúvida o seu curiosíssimo projeto de reforma ortográfica.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Após sair do exílio e voltar para o Brasil em 1934, Klinger se dedicou à literatura, escrevendo suas memórias e traduzindo publicações alemãs. Escritor prolífico que era, publicou 24 livros e mais de 140 artigos. Foi nessa época que começou a desenvolver uma ortografia própria, que aplicou em suas próprias obras. Um livreto intitulado Ortografia Simplificada Brazileira, assinado pelo “jeneral Klinger”, foi publicado em 1940 com o objetivo central de “simplificar e racionalizar” a língua portuguesa. A solução era radical: cada letra deveria representar um único fonema, e tudo seria escrito exatamente como era falado.
Klinger pretendia – entre outras radicais mudanças – eliminar do Português brasileiro as letras h, k, q, w, y, o dígrafo ch e o cê-cedilha. O h seria mantido apenas para os – assim chamados por Klinger – “soms molhados 'lhê' e 'nhê'”; as consoantes dobradas, o trema, o acento grave desapareceriam; seria excluído também o hífen que liga os pronomes oblíquos, que ficariam ligados diretamente aos verbos (detestalos); e a letra c passaria a representar o som de k. Veja exemplos dessa proposta em alguns excertos de autoria do general, redigidos conforme suas próprias regras:
“Faz-se esepsão para os cazos em ce tal preficso é segido por vogal lînguo dental [...]. Cuando o componente seginte comésa por vogal, desaparése acele.”
“Ora, dá-se ce o omem é ‘brazileiro da jema’ e se magoou com a nósa inofemsiva ipóteze, presipitou-se a nos replicar e niso se revelou fundamente emvenenado.”
Com isso, não demoraria muito pra ele virar motivo de chacota nacional: os jornais não perdiam uma única oportunidade de zombar do general sempre que ele se tornava assunto do dia por alguma razão. Colunas sociais se referiam a ele como “o da Tortografia” (palavra que Kingler usava com frequência pra se referir à ortografia então em vigor).
Logo após os generais darem o golpe de Estado em 1º de abril de 1964, Klinger – já na reserva – não perdeu tempo e, por meio de cartas abertas aos “jenerais do ezército”, pediu para que a revolução (eufemismo militar para golpe) fosse aproveitada para realizar também uma revolução ortográfica. Uma dessas cartas, enviada ao general Costa e Silva, ainda colocava a culpa pelos problemas ortográficos do país nos comunistas:
“Ce beleza! Ce benemêsia [vale lembrar que, nessa ortografia, a letra c tem som de k] seria se a revolusão vigorante se estendese á republica das Letraz, igualmente infestada de atentados contra o rejime da ORTOgrafia alfabética, contra a democrasia, a probidade. Devéras, não vai nenhuma fantazia em emxergar na vijente TORTOgrafia a indisiplina COMUNISTA, a dezigualdade de tratamento, a imcongruêmsia, o desrespeito aos direitos e ás fumsoés, nas mazelas ce campeiaom sem seu domínio”. E concluía, dizendo: “Fóra, TORTOgrafia!”
Numa edição do Correio da Manhã (RJ) de abril daquele mesmo ano, um colunista contava: “O filho de um colega nosso, depois de passar os olhos pela última catilinária de Klinger, perguntou ao pai se aquilo era carta enigmática para ser decifrada”. Embora muito zombado enquanto era vivo, o fato é que até hoje seu trabalho tem servido de referência para estudiosos da língua portuguesa.
O visionário ortógrafo morreu junto com seu revolucionário projeto em 1969. Estaria a inscrição da lápide de seu túmulo redigida conforme a ortografia simplificada?
Comments