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Foto do escritorEvandro Debochara

Figuras da linguagem (VI): Zé da Ilha (1920-1950), fluente em malandrês

José da Silva Rosa, o “Zé da Ilha” (1920-1950), foi um famoso criminoso que tocou o terror no Rio de Janeiro durante os anos 40 e 50. Ele foi um dos mais maiores expoentes do dialeto malandrês carioca da primeira metade do século XX, e uma amostra de seu extraordinário talento pode ser conferida num excerto publicado na edição de 5/4/1959 do jornal Correio da Manhã. Na condição de réu, diante de juiz e jurados, o célebre malandro carioca prestou o seguinte depoimento.

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“Seu doutor, o patuá é o seguinte: depois de um gelo da coitadinha, resolvi esquiar e caçar outra cabrocha que preparasse a marmita e amarrotasse o meu linho no sabão. Quando bordejava pelas vias, abasteci a caveira e troquei por centavos um embrulhador. Quando então vi as novas do embrulhador, plantado como um poste na quebrada da rua, veio uma pára-queda se abrindo. Eu dei a dica, ela bolou, eu fiz a pista; fiz a pista, colei; colei, solei; aí ela bronquiou, eu chutei, bronquiou, mas foi na despista, porque, vivaldina, tinha se adernado e visto que o cargueiro estava lhe comboiando. Morando na jogada, o Zezinho aqui ficou ao largo e viu quando o cargueiro jogou a amarração dando a maior sugesta na recortada. Manobrei e procurei engrupir o pagante, mas recebi um cataplum no pé do ouvido. Aí, dei-lhe um bico com o pisante na altura da dobradiça, uma muquecada nos mordedores e taquei-lhe os dois pés na caixa da mudança, pondo-o por terra. Ele se coçou, sacou a máquina e queimou duas espoletas. Papai, muito rápido, virou pulga e fez a dunquerque, pois vermelho não combinava com a cor do meu linho. Durante o boogie, uns e outros me disseram que o sueco era tira e que iria me fechar o paletó. Não tenho vocação pra presunto e corri. Peguei um borracha grande e saltei no fim do carretel, bem no vazio da Lapa, precisamente às 15 para a cor de rosa. Como desde a matina não tinha engolido gordura, o roque do meu pandeiro estava me sugerindo sarro. Entrei na china pau e pedi um boi a mossoró com confete de casamento e uma barriguda bem morta. Engoli a gororoba e, como o meu era nenhum, pedi ao caixa pra botá no pindura que depois eu iria esquentar aquela fria. Ia me pirar quando o sueco apareceu. Dizendo que eu era produto do mangue, foi direto ao médico legal pra esculachar. Eu sou preto, mas não sou Gato Félix. Me queimei e puxei a solingem. Fiz uma avenida na epiderme do moço. Ele virou logo américa. Aproveitei a confusa pra me pirar, mas um dedo-duro me apontou aos xifópagos e por isto estou aqui.”


Página da edição do “Correio da Manhã” de 5 de abril de 1959.

Atordoado, o juiz mandou chamar um policial que entendia malandrês e realizou a seguinte tradução:

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“Sr. Doutor, a história foi a seguinte: Depois que fui abandonado por minha companheira, resolvi procurar uma outra que me preparasse a comida e lavasse meus ternos. Caminhava pela rua. Entrei num botequim, tomei uma cachaça e comprei um jornal. Depois de ler as notícias, encostado num poste, na esquina da rua, vi que uma morena se aproximava toda faceira. Olhei-a, ela também. Segui-a de longe e fui me aproximando. Aproximei-me mais um pouco e ela reclamou. Eu respondi. Ela reclamou, mas foi para disfarçar porque, olhando de soslaio para trás, vira que seu companheiro a seguia. Percebendo o jogo, fiquei de longe e vi quando ele a segurou pelo braço e mandou-a para casa. Fui saindo, mas, antes de poder me afastar mais, o amante da moça me agrediu. Revidei, dando-lhe um chute no joelho, um soco no maxilar e, de um salto, com outro chute no peito, joguei-o por terra. Ele sacou sua arma e atirou, mas eu já havia fugido, porque o sangue não combinava com a cor do meu terno. Durante a briga, disseram-me que o moço era policial e que me mataria. Não tenho vocação para defunto. Corri e peguei um ônibus, descendo no fim da linha, no Largo da Lapa, precisamente às 15 para as 6 h da tarde. Como desde a manhã não havia me alimentado, e meu estômago reclamava, entrei num restaurante chinês e pedi um bife a cavalo com arroz e uma cerveja preta bem gelada. Tomei a refeição e, como não tinha dinheiro, pedi ao caixa para assentar no caderno que depois eu pagaria a conta. Ia sair quando o policial apareceu. Disse que eu era malandro, foi direto ao cozinheiro para falar mal de mim. Eu sou preto, mas não sou Gato Félix. fiquei aborrecido e puxei a navalha. Agredi o meu rival. Ele ficou todo ensanguentado. Aproveitei a confusão para fugir, mas alguém me delatou apontando-me aos ‘Cosme e Damião’ e por isto aqui estou.”

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