Em 16 de janeiro de 1610, Galileu Galilei (1564-1642), entediado de tanto observar estrelas, mandou a Astronomia para o espaço e decidiu apontar sua lente para o microcosmo dos fenômenos linguísticos, ocasião em que constatou transformações no idioma que reforçavam a teoria do sistema linguístico de Nicolau Copérnico (1473-1543): a língua, viva e mutável, é a entidade perante a qual a reguladora gramática, mais cedo ou mais tarde, cede a mudanças e inovações aqui e ali, adaptando, variando ou alterando definitivamente suas regras; no fim das contas, é a gramática que – mesmo com a força centrípeta de conservação a seu favor – se move em torno da língua.
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Tais descobertas foram relatadas meses depois, na obra Sidereus Nuncius, em 13 de março de 1610, e provocaram grande escândalo, pois abalaram a visão de língua da época. Antes de Galileu, durante séculos, vinha sendo imposta a ideia, concebida pelo grego Cláudio Ptolomeu (90-168), de que a língua girava em torno da gramática. Esse modelo gramatocêntrico era aceito e adotado pelo pensamento eclesiástico, pois coincidia com os ensinamentos bíblicos que colocavam a norma-padrão como figura central e imutável da criação divina. A Igreja, apegada a essa ideia e a um latim morto e que já não ditava mais regras nem para suas filhas – as línguas românicas neolatinas –, recusava-se a reconhecer a descoberta de Galileu e pretendia manter a fé numa crença desenganada. Não é à toa que até hoje ainda há quem acredite que a gramática, além de fixa e inflexível, seja capaz de manter a língua sempre sob rédeas curtas.
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Na época, Galileu obteve várias comprovações para a teoria linguocêntrica. E hoje podemos apontar inúmeros exemplos no português que confirmam essa teoria. Eis alguns:
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1) Vários particípios irregulares, como “pego”, “gasto” e “ganho”, durante muito tempo vistos como aberrações e erros inadmissíveis, foram se consolidando na língua até receberem o status de correto pelos próprios gramáticos.
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2) A própria ortografia, fixada em diversas épocas segundo princípios etimológicos, cedeu gradativamente, em várias ocasiões, às pressões das variações fonéticas da língua: uma expressão hipotética como “accordo orthographico da lingoa portvgveza” (realizável no século XVI), por exemplo, teria sua grafia readaptada pela gramática diversas vezes no decorrer dos séculos, perdendo letras, recebendo/perdendo acentos até chegar à forma como a escrevemos hoje. Mais cedo ou mais tarde, a fonética acaba prevalecendo aqui ou ali, em algum aspecto, sobre a etimologia.
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3) A única pronúncia admitida pelos gramáticos para a palavra “algoz” sempre foi com o timbre fechado (ô), e assim consta em suas obras até hoje. Só que esqueceram de avisar isso à língua, pois a maioria dos falantes de português, seja do lado de lá ou de cá do Atlântico, pronuncia a palavra com o timbre aberto (ó), a ponto de até os dicionários e o próprio Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa reconhecerem isso, passando a finalmente registrar a palavra com dupla prosódia.
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4) Várias palavras durante muito tempo fixadas gramaticalmente como masculinas ou femininas mudaram espontaneamente de gênero à revelia das regras. “Personagem” era sobrecomum e exclusivamente feminino; hoje em dia, a maioria maciça dos gramáticos já reconhece sua natureza comum de dois gêneros: o personagem, a personagem.
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5) Muitos verbos outrora definidos pela gramática como defectivos passaram a ser conjugados integralmente pela língua: agir, advir, compelir, desmedir-se, discernir, embair, emergir, imergir, fruir, polir, prazer, submergir. Nenhuma norma gramatical de estrutura é capaz de impedir que, em algum momento, outros defectivos passem a apresentar conjugação mais ampla ou completa, o que pode acontecer graças a possíveis usos que venham a se consolidar na língua.
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Alguns anos depois, o Tribunal do Santo Ofício pronunciou-se sobre a teoria linguocêntrica, declarando-a herética e que a flexibilidade gramatical era cientificamente errada. Galileu teve seu livro incluído no Index librorum Prohibitorum e, após longo julgamento, foi condenado a abjurar publicamente suas ideias e proibido de opinar sobre gramática. Ao sair do tribunal, teria dito a célebre frase Eppure cambia anche (“E, no entanto, ela também muda”), referindo-se à gramática.
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