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Foto do escritorEvandro Debochara

Incríveis cagações de regras do pelotão pedante (II): “‘Primeiramente’ não existe!”

Há quem duvide da existência do advérbio de ordem “primeiramente”. Céticos declaram por aí que a palavra “não existe”; já os sabichões dizem que, se existe, “está errada”. Isso demonstra pouca leitura que a pessoa tem da própria língua culta (“Nunca vi ninguém usar!” ou “Nenhuma pessoa culta usa!”), ou interpretações gramaticais equivocadas (“Numeral não forma advérbio!”), ou falsas premissas (“Se ‘primeiramente’ existisse, então existiria ‘segundamente’, terceiramente’, ‘quartamente’..), ou juízos de valor (“É estranho, feio, deselegante!”), ou submissão a alguma cartilha restritiva (“O correto é apenas ‘em primeiro lugar’, ‘em segundo lugar’!), enfim, atitudes que ignoram a fértil produção daquele que é o único sufixo adverbial existente no Português.


Os soldados defensores da língua pátria se surpreenderiam se descobrissem que a palavra já vinha sendo empregada desde o século XV e encontrada inclusive na famosa carta de Pero Vaz de Caminha enviada ao rei D. Manuel I em 1500. E ficariam ainda mais surpresos se consultassem os gramáticos mais conservadores, como Napoleão Mendes de Almeida:


“Os advérbios em -mente tanto podem indicar modo como lugar ou outra circunstância; a ideia depende do adjetivo a que o sufixo é acrescentado: ‘exteriormente’ (lugar), ‘primeiramente’ (tempo), certamente (afirmação), cortesmente (modo)” (Questões Vernáculas, 1981)


Por falta de leitura, também não sabem que, embora nem sempre registrado como verbete, é usado por Aulete, Aurélio, Houaiss, Borba e Academia Brasileira de Letras a rodo nos verbetes de seus dicionários.


Ao ser confrontado com isso, e não podendo mais alegar que são formas erradas, os combatentes replicam como podem: “Mas é feio, é deselegante...” Tão deselegante que até célebres escritores apurados e eruditos – queridos, mas pouco lidos pelos pedantes – empregavam a palavra:


“Veio primeiramente a controvérsia, depois a descompostura, e finalmente a pancada.” (Machado de Assis, Academias de Sião, 1884)


Primeiramente, ninguém lhe poderia dissimular o caráter.” (Ruy Barbosa, Antologia, 2011)


Eis que então nos deparamos com o bravo guerreiro que se insurge contra todas essas referências, dizendo: “Numeral não forma advérbio!”. Infelizmente, ele nunca abriu um dicionário e ignora o fato de que “primeiro”, além de numeral, existe como adjetivo (algo que precede outros em tempo, lugar ou importância), o que permite sua formação com o sufixo -mente.


Embora recuada, a tropa dos sabichões não se dá por vencida e resiste: “Se ‘primeiramente’ existe, então por que não há ‘segundamente’, terceiramente’?” Mas não é que essas formas existem há tempos na língua culta? Estão por aí pelo menos desde o século XVI e eram mais empregadas antigamente em vários documentos oficiais, eclesiásticos e literários do Português, mas seu uso menos frequente hoje não as desqualifica.


“Segundamente” e “terceiramente” têm registros dicionarizados no Português brasileiro e europeu (Aulete, Borba, Academia de Ciências de Lisboa etc.); Napoleão, nosso mais carrancudo gramático, afirma ao se referir à palavra latina “secundo”:


“Advérbio latino, empregado em português; significa ‘em segundo lugar’, ‘segundamente’“ (Dicionário de questões vernáculas, 1981)


Seu colega Bechara reforça isso:


Segundamente, terceiramente. O uso desses advérbios está de acordo com a língua-padrão. (Novo dicionário de dúvidas, 2018).


Apenas para ilustrar o caso, vale observar usos análogos entre as irmãs da língua portuguesa: o Diccionario de La Lengua Española, da Real Academia Española – que tem critérios bastante rigorosos – registra segundamente e terceramente (https://dle.rae.es/); já o Dictionnaire de l’Académie française registra premièrement, secondement (ou deuxièmement) e troisièmement (https://www.dictionnaire-academie.fr/article/A7O0437).


Gravemente feridos, os soldados lançam as últimas granadas que lhes restam: “Ah, tá... Quer dizer então que a gente pode seguir em frente e dizer ‘quartamente’, ‘quintamente’ e assim por diante? KKKKK!” Ora, não há nenhum princípio morfológico que condicione a formação de palavras ordinais (primeiramente, segundamente, terceiramente) à formação de outras ordinais possíveis (quartamente, quintamente etc.). Como bem observam os gramáticos, o que legitima qualquer palavra como correta é tão somente seu uso consolidado na língua culta. Esta, há séculos, acolheu inicialmente as formas “primeiramente”, “segundamente” e “terceiramente”, tornando-se o uso destes dois últimos menor com o passar do tempo. Ainda assim, conforme bem observa Bechara, o emprego desses advérbios “é gramaticalmente correto, apesar da frequência de uso das formas ‘segundamente’ e ‘terceiramente’ ser bem menor em comparação com primeiramente” (Novo Dicionário de Dúvidas, 2018). Logo, o uso de “primeiramente” nunca dependeu de haver “quartamente, quintamente” etc., tampouco de existir – em maior ou menor uso – “segundamente” ou “terceiramente”.


Para quem prefere não usar “segundamente” nem “terceiramente”, mas deseja formas análogas, alternativas não faltam. O gramático conservador Eduardo Carlos Pereira (1855-1923), em vez de “segundamente”, registra ”secundariamente”, no que foi seguido por outro conservador, Napoleão (que, como já vimos, também registra “segundamente”). Luft escrevia: “A gramática artificial é, primeiramente, a descrição desse saber linguístico e, secundariamente, uma obra – livro, manual – em que se registra essa descrição” (Moderna Gramática Brasileira, 2002). Como esse advérbio deriva do adjetivo “secundário”, a analogia original ocorre com “primário > primariamente”, emprego feito também pelo mesmo gramático recém-citado: “Como a palavra pode ser falada (primariamente) ou escrita (secundariamente), depreende-se que ‘verbal’ tanto pode ser oral como escrito.” (ABC da Língua Culta, 2010).

 

Outras opções ficam a cargo da diversidade do rico repertório da língua: em vez de “segundamente” ou “secundariamente”, há quem use “em primeiro lugar”, “em segundo lugar”, “em terceiro lugar”; “depois”, “logo em seguida”, ou simplesmente “além disso”. No lugar do pouco usado hoje “terceiramente”, concluindo-se um argumento em três níveis, pode-se empregar “por fim”, “enfim”, por exemplo.

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