[...] escrevi um soneto que assim principiava: “Como essas coisas que não valem nada e parecem guardadas sem motivo (alguma folha seca, uma taça quebrada...), eu só tenho um valor estimativo”. Pura afetação de modéstia, dirias... Mas tive a imodéstia de o mostrar um dia a Cecília Meireles. Ora, minha amiga implicava com os “como” em poesia; dizia ela que a comparação dividia um verso em duas partes, ficando a realidade à esquerda e a sua aura poética à direita, quando ambas deviam estar fundidas. Pois bem, o meu soneto ainda tinha o agravante de ostentar o “como” logo no princípio. De modo que Cecília sorriu e comentou:
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– Aonde é que você vai parar com esse regime alimentício, comendo folhas secas, taças quebradas, coisas assim...?
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Resultado: jamais publiquei o tal soneto, que aliás não era lá essas coisas e deve estar dormindo um merecido sono nos arquivos do Correio do Povo.
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(QUINTANA, M. Poesia completa em um volume. Organização de Tania Franco Carvalhal. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.)