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Foto do escritorEvandro Debochara

Descriminação do pleonasmo

Muita gente boa assimila a ideia – desgraçadamente equivocada – de que toda e qualquer redundância é errada. Há quem inclusive se dedique a caçar e a listar pleonasmos, como se TODOS fossem viciosos, denunciando-os como drogas vendidas por traficantes que embalam variantes estigmatizadas com rótulo de variantes cultas.


Empenhadas em zelar pelo bom português, as pessoas podem acabar ignorando o fato de que nem toda redundância é um crime de lesa-gramática, havendo vários casos em que se pode redundar, sim, para fins de ênfase, clareza ou estilo. Veja só o que diz o Houaiss em seu verbete “pleonasmo”:


“Redundância de termos no âmbito das palavras, mas de emprego legítimo em certos casos, pois confere maior vigor ao que está sendo expresso (p. ex.: Ele via tudo com seus próprios olhos).” (2001, p. 2238)


O Aurélio tá com ele:


“Redundância de termos que em certos casos têm emprego legítimo, para conferir à expressão mais vigor, ou clareza. Ex.: Vi com estes olhos que a terra há de comer; ‘Vi claramente visto o lume vivo / Que a marítima gente tem por santo’ (Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 18); ‘entraram no coche, carruagem sua especial dele.’ (Camilo Castelo Branco, O Judeu, I, p. 117); ‘A vida continua. É seu ofício dela.’ (Antônio Carlos Vilaça, O Anel, p. 99).” (1975, p. 1101)


E Bechara arremata:


“O grande juiz entre os pleonasmos elegantes e viciosos NÃO é a LÓGICA da gramática, mas a tradição refletida no uso dos bons escritores e das pessoas cultas. Se não dizemos ‘sair para fora’ (exceto em certos momentos de ênfase intencional), não nos choca a sensibilidade ‘sair por fora’, em expressões cotidianas como ‘a água está saindo por fora da chaleira’. Se refugamos 'voltar para trás’, é insubstituível o ‘atrás’ de ‘palavra de rei não volta atrás’.” (Lições de português pela análise sintática, 2014, p. 222).


Um dos alvos favoritos dos caçadores de pleonasmos é “há... anos atrás” (ou “meses”, “dias” etc.). Alega-se que “há anos” ou “anos atrás” são suficientes, sem a necessidade simultânea de “há” e “atrás” no mesmo balaio. Basicamente, de fato, é isso mesmo o que a gente lê em diversas fontes – inclusive de muito prestígio.


No entanto, deixemos de lado por um momento o que dizem professores, revisores, manuais de redação, apostilas, blogs, páginas de redes sociais e consultemos alguns dos nossos principais gramáticos contemporâneos:



Celso Luft:


“Em expressões como há um ano atrás, há dez anos atrás, etc., e atrás são redundantes. preferível sem redundância: há um ano, ou um ano atrás. Em todo caso, TAIS REDUNDÂNCIAS SE LEGITIMAM PELO USO.” (ABC da língua culta, 2010, p. 197)



Cegalla:


“O conjunto ‘há... atrás' transmite à frase mais força e precisão, motivo pelo qual NÃO nos parece vicioso, como viciosa NÃO é a expressão consagrada pelo uso ‘voltar atrás’. Os textos seguintes reforçam nossa opinião: ‘A obra foi publicada há alguns atrás’ (Moacir Werneck de Castro, A ponte dos suspiros, p. 64) / ‘Não existia essa consciência há 40 anos atrás.’ (Dom Lucas Moreira Neves, Jornal do Brasil, 3/6/92) / ‘A fidalga, há anos atrás, tinha fugido com o doutor dos Pombais, e nunca mais voltara.’ (Camilo Castelo Branco, A brasileira de Prazins, p. 69).” (Dicionário de dificuldades da língua portuguesa, 2009, p. 193)


Bechara:


“PODE-SE acrescentar (com intuito de ênfase) ou não as palavras ‘atrás’ ou ‘passado(s)’ juntos do verbo haver em expressões que indicam tempo decorrido, do tipo: há anos (atrás), há anos (passados), há meses (atrás), há dias (atrás), etc. Temos exemplos na literatura: ‘Chamava-se Alfredinho e há três anos atrás, depois de um flerte efêmero, tinham brigado, porque ele era um ciumento atroz.’ (Nelson Rodrigues, ‘O chantagista’, A vida como ela é...); ‘Há cinquenta anos atrás, um exilir contra a sífilis poderia ser citado como o benfeito número um da pátria.’ (Carlos Heitor Cony, ‘Notícia de Pau Vermelho’, Da arte de falar mal).” (Novo dicionário de dúvidas da língua portuguesa, 2016, p. 141)



Rocha Lima, numa lição em que ensina a distinção entre “a” e “há”:


“[...] A boa lição documenta-se, à maravilha, nesta frase de Drummond: ‘Hoje, amanhã, daqui a cem anos, como HÁ CEM ANOS ATRÁS, uma realidade física, uma realidade moral se cristalizam em Itabira’.” (Gramática normativa da língua portuguesa, 2011, p. 426)



Viu só? Agora pensa: se nem mesmo os gramáticos mais modernos condenam “há anos atrás” – comprovando, com excertos de célebres literatos, seu emprego legítimo na língua culta –, que razão existe para continuarmos xaropando os outros com isso? Para que diabos alguém precisa ser mais rigoroso e mais conservador que os próprios gramáticos?


“Ué, liberou geral então?” Calma. Em textos que precisam ser enxutos e requerem mais objetividade – como o jornalístico –, você pode maneirar nos excessos e prolongamentos (e isso tem a ver com estilo, contexto, e não com erro).


“Ain... se eu escrevo assim em redação de concurso, perco ponto e me ferro!”, diz o maníaco concurseiro. Meu amigo, a língua culta não se restringe nem se submete aos rigorosos critérios dos concursos que você faz. No seu caso, é preciso seguir as regras (filtradas) de quem organizou o jogo, ora! Professores de cursos preparatórios são pagos justamente pra ensinar a você a variante concurseira de prestígio da língua (que é um filtro da gramática normativa).


“Ain, mas se eu posso muito bem dispensar ‘há’ ou ‘atrás’, então pra que usar os dois juntos?” Releia atentamente o que foi dito acima... ou procure um professor de interpretação de texto.


“Ain, mesmo assim acho feio, fere meus ouvidos, não gosto e vou continuar evitando...” A questão aqui não é o juízo de valor que você faz nem o que você opta por fazer, mas o que você procura censurar nos outros. Em casos como o do Raulzito, redunda quem quiser e você não tem nada com isso.


E toca Raul:


Eu nasci há dez mil anos atrás E não há nenhum pleonasmo que eu não saiba usar

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