A ortoépia quer prescrever pronúncias para as palavras, mas é tão vacilona e insegura que sua própria pronúncia varia entre as formas com “e” aberto (“ortoépia”) e fechado (“ortoepia”), sendo ambas consideradas corretas por ela própria. Ela é tão unha e carne com a prosódia – a polícia da acentuação – que às vezes até gramáticos e dicionaristas as confundem uma com a outra ou simplesmente as tratam como se fossem sinônimas.
Entre outras coisas, elas acabam servindo para ensinar algo bem diferente do que pretendem, isto é, quão variáveis e controversos podem ser tanto os usos quanto as próprias regras de pronúncia ou acentuação de inúmeras palavras, como alg(ô)z / alg(ó)z, Balcãs / Bálcãs, biotipo / biótipo, boemia / boêmia, colm(ê)ia / colm(é)ia, hieroglifo / hieróglifo, melitúria / melituria, [eu] mobil(í)o / mobílio (verbo), Oceania / Oceânia, ômega / om(é)ga, pátena / pat(ê)na, res(ê)da / resedá, xerox / xérox, [em que] p(ê)se / p(é)se, Ror(á)ima / Ror(ã)ima etc.
Até gramáticos e dicionaristas divergem seriamente em vários casos assim, ensejando tretas em que dois falantes acreditam ter, cada um, exclusiva razão de suas respectivas pronúncias. Exemplos? Em teoria, os vocábulos terminados em -ótipo são proparoxítonos: biótipo, daguerreótipo, estereótipo, protótipo etc. Achou que havia um padrão aqui? Achou errado, usuário! A prática manda a teoria catar coquinhos: vários desses vocábulos têm prosódia vacilante, recebendo acento tônico na sílaba -ti-, como biotipo, logotipo, linotipo etc. O mesmo dilema se dá com autópsia/autopsia, biópsia/biopsia e necrópsia/necropsia, que se pronunciam ora como proparoxítonos, ora como paroxítonos. Diante dessas variações, muitos gramáticos acatam a dupla pronúncia a contragosto; mas um ou outro pirracento fica de birra, negando uma das formas – como se a língua se importasse. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ IRONIA DO DESTINO: Frequentemente, pessoas que adoram corrigir a fala dos outros – principalmente em público – desconhecem a pronúncia correta OU a dupla prosódia da língua culta. Não é difícil se deparar, por exemplo, com alguém que, ao ouvir outra pessoa pronunciar rubr(í)ca, dizer que “é r(ú)brica que se fala... como p(ú)dico, por exemplo”. A pessoa teria razão em Portugal, onde a prosódia dos nativos trata essas palavras como proparoxítonas, mas não no Brasil. ⠀ O grande carma da ortoépia é ter que lidar com o inevitável contágio e a irreversível contaminação entre as palavras. TODOS os gramáticos só admitem "algoz" com a pronúncia fechada (ô), mas praticamente TODOS OS FALANTES pronunciam com timbre aberto (ó), pois, mesmo que original e tradicionalmente fechada, foi contaminada por palavras terminadas em -oz com “o” aberto, que são maioria: atroz, veloz, albatroz, feroz, voz etc. (e, se você a pronuncia com o “o” fechado, ou você é alienígena ou já morreu por dentro). Outro tipo de contágio se deu com “beneficência“ e “beneficente”, que, contaminada por “benefício”, acabaram originando “beneficiência” e “beneficiente”, condenadas como aberrações mutantes. A prosódia, então, coitada, vive lutando em vão contra a implacável silabada (deslocamento do acento tônico): insiste, por exemplo, que “cateter” é oxítona, mas o Brasil inteiro – inclusive profissionais de enfermagem e medicina, que manuseiam diariamente o material – só fala “cat(é)ter” (Convenhamos: só psicopatas e professores de português falam “catet(é)r”). Em outra luta perdida, vários autores prescrevem até hoje unicamente a forma original "boêmia", mas esta foi contaminada por palavras terminadas em -ia – com tonicidade no “i” do sufixo –, como cortesia, carestia, mordomia, orgia... e virou boemia. Só os boêmios continuaram usando chapeuzinhos. Em outro episódio de erro que se tornou correto, “civil” sofreu o contágio com adjetivos terminados em -ível (horrível, possível, incrível), dando origem a “cível” (“palavra malformada” cuja mudança na acentuação é tudo culpa de “juristas e meirinhos”, segundo Napoleão Mendes de Almeida), que acabou se distinguindo semanticamente da palavra que a originou. Como se vê, a luta em prol de qualquer pureza original é inglória e em vão.
RESUMINDO: Sem controle algum sobre a pronúncia e a tonicidade de trocentas palavras, ortoépia e prosódia se afogam num limbo de variações; para um monte de casos, elas são a placa “É proibido dançar agarrado, mas se quiser pode” da língua portuguesa. Na dúvida entre aquilo que é única e exclusivamente certo e aquilo que é facultado, convém não se pronunciar a respeito até consultar (várias) obras de referência – principalmente se quiser corrigir alguém com convicção.
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