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Foto do escritorEvandro Debochara

Personagem tem gênero fluido

Foi do francês e do provençal que herdamos inumeráveis substantivos terminados em -agem (oriundo do latim -aticu), todos originalmente masculinos, mas que se tornaram femininos posteriormente, por influência de outro sufixo, -agem, este de ascendência diretamente latina (-ago, -aginis), com as noções de ‘estado, situação’, ‘ação’, ou ‘resultado da ação’: imagem, voragem etc.


Assim, em várias épocas a partir do século XIV, o francês (-age) e o provençal (-atge, -aitge) emprestaram diversas palavras para o português com este sufixo: bagage, charriage, courage, lenguatje, message / messatge, omenatge, ospedaje, paysage, passage, sabotage, salvatge, avantage, viatge etc; paralelamente, outras se formaram com o outro sufixo homônimo, mas derivadas de verbos e substantivos já existentes no próprio português: capotagem, carceragem, friagem, garimpagem, estiagem etc.


Na língua em que se originou (séc. XIII), a palavra “personagem” é masculina (le personnage), assim como as demais compostas com o sufixo -age. Mas tal herança de gênero não resultou na fixação de uma forma igualmente masculina para essas palavras em nossa língua. Durante a era do português arcaico (1214–1536), por exemplo, os chamados substantivos de gênero único viviam oscilando entre o masculino e o feminino. Em meio ao caótico processo de normatização gramatical, na ocasião em que ingressou na língua portuguesa (séc. XVI), “personagem” já apresentava, desde então, gênero vacilante, sendo usada ora no masculino, ora no feminino.


Esse gênero flutuante se manteve através dos séculos, tanto que um dos mais antigos dicionários da língua (Bluteau e Morais, 1789) registrava essa duplicidade. No decorrer do século XIX, apesar da variação, começa a rolar uma tentativa de fixação num único gênero. Na primeiríssima edição do Dicionário Caldas Aulete (1881), que também registrou esse substantivo com os dois gêneros, consta esta observação no verbete da palavra: “No masculino, é termo condenado pelos puristas como galicismo”.


E hoje em dia? Há consenso? Não. Napoleão e Sacconi fazem coro com puristas de séculos passados e só admitem “a personagem”. Conservadores que são, não toleram gênero fluido. Mas os gramáticos mais esclarecidos estão em maior número. Para Celso Cunha (2001, p. 196) “diz-se, indiferentemente, o personagem ou a personagem com referência ao protagonista homem ou mulher”. Rocha Lima (2007, p. 75) também trata o vocábulo como “substantivo de duplo gênero ou de gênero vacilante”.


Já Cegalla, embora também reconheça que a palavra seja hoje usada corretamente tanto no feminino como no masculino, faz um porém: “Com referência a mulheres, deve-se usar o feminino” (2009, p. 307). Para Luft (2010, p. 345), tanto faz (embora observe que, no sentido de pessoa, de personalidade, é “preferível” o gênero feminino). Ele está fechado com Bechara, que cita vários exemplos de escritoras e escritores contemporâneos, endossando o duplo gênero gênero que já vinha sendo registrado em dicionários e Volp, observando que “podemos dizer ‘a personagem’ ou ‘o personagem’ tanto para o sexo masculino quanto para o feminino” (2022, p. 355).


Nesse julgamento, a ala conservadora foi voto vencido.

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