Após a publicação de seu livro Sou péssimo em português, Cíntia Chagas virou influenciadora, comentarista de rádio e se consagrou como uma das mais famosas caga-regras do país, prestando grande desserviço para o ensino de português no Brasil e contribuindo para estreitar ainda mais a visão de língua (culta) do brasileiro médio. É claro que não se pode afirmar que ela só invente coisas nem que não ensine algo de útil. Se, por um lado, muita gente pode agradecer as lições aprendidas, por outro, ela dissemina desinformação gramatical a rodo.
Talvez por necessidade de se manter em evidência a todo custo, a comentarista da Jovem Pan ADORA procurar pelo em ovo, emitindo juízos de valor sobre palavras/expressões populares ou cultas (“até existe, mas não use”; “é correto, mas é feio”, entre outras frescuras), reforçando o conceito distorcido que leigos têm de pleonasmo (num trecho de seu livro ela diz, por exemplo, “a vida é uma só” é pleonasmo; correto é apenas “a vida é uma”), desqualificando expressões idiomáticas e implicando até mesmo com inúmeros usos próprios do cotidiano, como “mano”, “rolê”, “sofrência” (palavra antiga e volpeada...) e (pasmem!) a redução “zap” de WhatsApp.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
O fato é que as falácias dessa famigerada influenciadora teriam sido evitadas se ela procurasse proceder como todo bom profissional de sua área, estudando mais, pesquisando e consultando dicionários e gramáticas. Às vezes, em certos momentos de lucidez, ela até demonstra o cuidado de se fundamentar em obras de referência; mas frequentemente se deixa levar pelo frenesi de dizer o que lhe dá na telha e passa a ensinar seus achismos, engessando a mentalidade, a linguagem, a expressividade e o estilo de seguidores e fãs.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Hoje vamos desmascarar uma cagação de regra (entre as várias) que ela divulga nas redes (uma sacconice reproduzida não só por ela, mas também por autores de gramáticas para concursos). Em seu perfil no TikTok, a professora ensina que expressão “ao meu ver” NÃO EXISTE: “O correto é ‘a meu ver’. A expressão ‘ao meu ver’ é uma invenção sua. Você que inventou”.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Teria sido então inventada por pura ignorância de grandes autores da língua portuguesa? Porque é isso que atestam tanto as mais antigas quanto as mais modernas obras literárias, lexicográficas e gramaticais. A verdade é justamente o contrário do que ela ensina: dizer que ‘ao meu ver’ é incorreto é que é uma invenção.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
1) Celso LUFT em ABC da Língua Culta (2010, p. 46):
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
“a meu ver :: ao meu ver – A meu juízo, no meu entender. Facultativo o artigo: ‘a’ ou ‘ao meu ver’.”
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
2) Domingos CEGALLA em Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa (2009, p. 47):
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
“AO MEU VER. Locução adverbial. Na minha opinião, pelo que me parece: ‘Ao meu ver, deviam atribulá-lo estes pensamentos: como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?’ (Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, cap. VIII). Também se diz 'a meu ver'.”
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
3) Evanildo BECHARA em Novo Dicionário de Dúvidas da Língua Portuguesa (2022, p. 25):
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
“A MEU VER, AO MEU VER. Ambas as formas estão corretas. Tem-se abusivamente condenado o emprego do artigo junto a possessivo em expressões do tipo ‘ao meu ver', ‘ao meu pedido’, ‘ao meu modo’, ‘ao meu lado’, ‘ao meu bel-prazer’, etc.: ‘As estrelas lhe falavam numa espécie de gíria e já cumpriam, para com ele, deveres de sociabilidade indignos, AO MEU VER, de uma estrela.’ (Barbosa Lima Sobrinho, Árvore do bem e do mal); ‘Gilberto Freyre transcreve naquele seu livro estas palavras do ilustre francês: AO MEU VER, nas atuais circunstâncias, a prosperidade do país [...]’ (Marcos Vinícios Vilaça, Em torno da sociologia do caminhão); ‘A meu ver, o remédio é tornar públicas as sessões, anunciá-las, convidar o povo a assistir a elas.’ (Machado de Assis, A Semana)”
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Percebem como é fácil desmentir caga-regras? Basta consultar gramáticos e pronto. Façam isso em vez de aprender português pelo TikTok e desconfiem até de professores – principalmente quando se mostrarem cheios de nove-horas com expressões usuais.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
A primeira regra do clube da gramática é: desconfie de tudo que ensinam por aí (DURDEN, 1996).
ความคิดเห็น