Publicado no Rio de Janeiro há 200 anos, o Diccionario Carcundatico ou explicação das prhases dos carcundas é uma paródia de dicionário redigida pelo militar português José Joaquim Lopes de Lima (1797-1852). Composto por verbetes carregados de ironia e sarcasmo, a pequena publicação é um panfleto político e ideológico bastante representativo da época: “carcundático” é um adjetivo criado pelo autor – um liberal constitucionalista – para se referir a seus opositores políticos, os “carcundas” (corcundas), que eram monarquistas absolutistas.
O autor exerceu vários cargos na administração portuguesa e fazia parte de uma facção do liberalismo português que defendia a Carta Constitucional de 1826, em oposição aos defensores da Constituição Portuguesa de 1822. Motivado pela leitura de “muitas expressões transformadas sómente para illudir”, ele decidiu criar o dicionário, “para lhes restituir a sua genuina significaçaõ". Embora não seja uma obra lexicográfica propriamente dita, apresenta a estrutura básica de um dicionário, composto de acepções satíricas.
Alguns verbetes ficaram obviamente datados por carecerem do devido contexto histórico para terem suas ironias e sarcasmos mais bem compreendidos e degustados hoje; já outros talvez continuem atuais:
“Avós – Homens endeozados pelos Carcundas, para nos aprrezentar as suas rançozas maximas, e o seu gothico comportamento, como grandes exemplos de submisão a qualquer governo, por mais oppressivo que seja.”
“Bem publico – Quasi todos os carcundas são inimigos do Bem publico, e amigos dos Bens do publico.”
“Carne – Comida condemnada nas sextas feiras, e sabbados, e mais 40 dias no anno, em prol de huma Nação estrangeira, que nos embute bacalháo podre a troco de ouro, e prata [...].”
“Constituiçaõ – Plano de desordem [...] inventado pelo espirito de seita na sua effervescencia, e que o povo, naõ sei porque, applaude; mas que ainda que trouxesse consigo melhoramentos uteis, para ser despresivel basta ter começado debaixo para cima, sendo que só os Reis, e seus Ministro tem o poder, recebido do Ceo, de mudar o Governo, a que os outros homens devem obedecer cegamente, como um rebanho ao seu Pastor."
“Conventos – Cazas consagradas a Deos, com muita gente dentro consagrada a si mesma.”
“Cortes – Associaçaõ irregular em que o plebeo se atreve a combater as oppiniões do Nobre cara a cara; sem que este ao menos tenha um lugar distincto por cima da cabeça daquelle; e aonde qualquer 'quidam' ouza contrariar uzos antigos, já sagrados pela sua diuturnidade, attendendo mais ao bem de hum simples Lavrador, do que ao esplendor na Nobreza Titular.”
“Curia – Corte do papa cheia de Eminencias, nas quaes s'encontra iman sufficiente para atrahir e absorver todos os metaes da Europa."
“Dezembargador – Cidadaõ incumbido de dezembaraçar os processos, mas que toma por tarefa embaraça-los.”
“Dominios – Feudos dos nossos tempos: restos da barbaridade do século quinze, postos à moda, bem como os vestidos antigos com as feições mudadas.”
“Doutores – Nem todos saõ doutos; mas todos se tem por isso.”
“Empregos – Meios de accomodaçaõ, para os amigos dos Mandões ganharem algum vintém."
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“Emprestimo – Pouco mais ou menos o mesmo que 'roubo' em bom portuguez; por exemplo, os do Banco do Brasil.”
“Etiquetas – Formalidades filhas da adulaçaõ, e authorizadas pelo uzo.”
“Fidelidade – Apathico soffrimento [...] de hum escravo para com os caprichos de seu senhor.”
“Liberdade de imprensa – Anathema contra os Carcundas cujos effeitos se começão já a sentir, patenteando tyranias, vexames, extorsões, e ladroeiras."
“Orthographia – Unico ponto em que Portugal tinha huma ampla liberdade de escrever.”
“Restituir – Uzurpar a hum para dar a outro: verbi gratia, Uzurpar a Liberdade ao povo Napolitano, para restituir a omnipotencia ao patife do seu Rei.”
Caso tenha interesse em conhecer essa raridade na íntegra, baixe gratuitamente a edição original da publicação de 1821 aqui: https://purl.pt/6641
No mesmo ano, o autor publicou um “supplemento” ao dicionário contendo mais um punhado de verbetes: https://purl.pt/6666