top of page
Foto do escritorEvandro Debochara

Uma artificial distinção que passa des(a)percebida

Em tirinha publicada no último domingo em seu perfil no Instagram, o cartunista Fernando Gonsales – genial autor da tira de quadrinhos Níquel Náusea – pôs na fala dum personagem a palavra desapercebido em vez daquela prevista em várias gramáticas naquele contexto: despercebido. Não demorou para que vários seguidores do perfil comentassem o post, dizendo: “Não é desapercebido! É d-e-s-p-e-r-c-e-b-i-d-o!”


De fato, a maioria dos gramáticos prescreve que despercebido significa “não notado, não percebido, ignorado”, enquanto desapercebido só pode ser entendido como “desprovido, desguarnecido, desaparelhado” ou, ainda, “desprevenido”, “desacautelado”. Trata-se, no entanto, de um rigor para o qual o Português de todos os tempos sempre foi indiferente, fruto duma cagação histórica de regra.


Tira de Fernando Gonsales publicada no último domingo

Clássicos e documentos oficiais em língua portuguesa de diversas épocas apresentam perceber, aperceber, desperceber e desaperceber e seus derivados como sinônimos. Nenhum dicionário de língua portuguesa, até fins do século XIX, contrariava tal sinonímia, embora todos eles registrassem, também, as demais significações de ambos os termos. A primeiríssima edição do Dicionário de Caldas Aulete definia desapercebido tanto como “desprevenido” e “desacautelado” quanto o “que não foi visto ou notado”: “Este facto passou a todos desapercebido” (AULETE, 1881, p. 475). Era tão normal e comum que o gramático Júlio Nogueira observou o seguinte em sua gramática (1929), logo após apresentar a alardeada diferenciação entre os dois vocábulos: “É distinção útil, MAS DE CRIAÇÃO MODERNA”.


“Criação moderna”, dizia o gramático quase 100 anos atrás. Quando e onde, então, essa sinonímia passou a ser condenada gramaticalmente? E quem teria cagado essa regra?


Tudo começou com um purista lusitano chamado António da Silva Tullio (1818-1884), escritor, historiador e bibliotecário, “o inventor da distinção entre despercebido e desapercebido”, como se referia a ele o filólogo português Cândido de Figueiredo. Era cunhado do dicionarista português Caldas Aulete e disseminou essa invenção a partir dum artigo publicado em Estudinhos da lingua pátria e numa edição de Archivo Pittoresco (vol. III, 1860):


“É trivial ouvirmos e lermos em lettra redonda: Não passou desapercebida a sua observação, tal pessoa, objecto ou allusão. Fulano fez-se desapercebido, ou fiz-me desapercebido. N'estas, e em outras muitas phrases vulgares que ora nos não lembra, erra-se vergonhosamente a natureza do verbo desaperceber, e a sua regencia. Desaperceber, que ordinariamente se usa no particípio desapercebido, é verbo activo, e significa desapparelhar, desarmar, desprover, e também desavisar, desprevenir. Desperceber e despercebido, é não ter ou não ser percebido, não entender, não reparar. Já se vê que este verbo tem accepção e natureza mui diversa d'aquell'outro, e usa-lo pelo modo apontado nas locuções que acima transcrevemos, é barbarismo intolerável. Deve-se, pois, dizer: Não passou despercebida a sua allusão. Fulano fez-se despercebido, isto é, desentendido, etc. [...] Basta o pouco que fica dito, para que os escriptores principiantes evitem erro tão crasso...” (TULLIO, 1860, p. 31).


Conforme conta o filólogo Heráclito Graça (1837-1914), em Portugal muitos acharam “procedente a engenhosa doutrina”, e aqui no Brasil “muita gente ilustrada louvou e encareceu a sutileza, como a expressão da verdade, reputando erro crasso atribuir a desapercebido significação idêntica à de despercebido, e tudo isso sem maior exame da matéria”. Um bom exemplo é o nosso purista-mor Ruy Barbosa, que reclamava que “muita gente de alto cothurno usa desapercebido no lugar de despercebido” (1904).


O filólogo brasileiro não parou por aí: fez exaustiva pesquisa documental e literária para escancarar a artificialidade dessa condenação, contestando devidamente a “distinção profunda que ele [Silva Tullio] imaginou entre desapercebido e despercebido” (1904, p. 188). Para começar, ele observa que Silva Tullio já se contradiz ao dar a desapercebido, além do sentido de “desaparelhado”, “desprovido", “desarmado”, o de “desavisado” e “desprevenido”, que são sinônimos de “desatento”, “inadvertido” e “distraído”... Em seguida, apresenta grande número de citações literárias que evidenciam a contradição entre a regra inventada por Silva Tullio e a lição dos clássicos. Suas notáveis pesquisas podem ser conferidas neste livrinho maravilhoso: https://www.academia.org.br/publicacoes/fatos-da-linguagem.


Outro grande filólogo que analisou o caso foi Antenor Nascentes (1886-1972). Em seu Dicionário de sinônimos, ele contesta essa distinção e justifica a sinonímia entre essas duas palavras, apresentando abordagem diferente daquela de Heráclito Graça.


Alinhados aos filólogos, estão os dicionaristas. A maioria dos dicionários – baseados na língua de fato e na literatura – sempre ignorou essa distinção. É o Dicionário da própria Academia Brasileira de Letras (ABL) que registra: “Desapercebido adj. 1. Que não foi notado; despercebido: O fato passou desapercebido (a todos). [...] (ABL, 2008, p. 407).

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Já o Houaiss, além de também dar tais palavras como sinônimas, sentencia: “Os parônimos desapercebido e despercebido foram objeto de censura purista, acoimados de falsa sinonímia, [...] no entanto, ante o emprego desses dois vocábulos como sinônimos por autores de grande expressão quer no século XIX como em inícios do século XX, como Castilho, Camilo, Rebelo da Silva, Garcia Redondo etc., a rejeição faz-se inaceitável” (HOUAISS, 2001, p. 955).


E o Aurélio não fica atrás. No verbete aperceber, enfatiza sua sinonímia com perceber e ainda dá uma esculachada em quem condena isso: “É excelente – e não condenável, como querem puristas maníacos – o uso de aperceber nas acepções de notar, ver, distinguir, perceber” (FERREIRA, 1975, p. 114).


O tradicional Dicionário de sinônimos e antônimos de Francisco Fernandes registra desapercebido e despercebido como sinônimos (FERNANDES, 2008, p. 279). E, ainda que indiretamente, seu Dicionário de regimes de substantivos e adjetivos legitima isso com abonação em clássico da literatura: “Desapercebido – para: 'Os amôres de Corday com o marquês tinham passado desapercebidos para a sociedade de Caen' (Camilo Castelo Branco, Livro Negro de Padre Dinis, 52) (FERNANDES, 1971, p. 129)”.


Inúmeros dicionários de sinônimos do português (brasileiros e portugueses) dão despercebido = desapercebido. Já outros que também não apresentam tais termos como sinônimos acabam estabelecendo, ainda que indiretamente, a sinonímia.


Em seu famoso Dicionário prático de regência nominal, Celso Luft registra uma forma como variante da outra: “desapercebido (variante de despercebido, v.) (2010, p. 155)”; “despercebido (ou desapercebido, v.)” (2010, p. 167). É também esse autor que, entre os gramáticos, demonstra ser um dos poucos dispostos a peitar a cagação de regra oitocentista. Para ele, o significado de despercebido como desatento, desacautelado foi o que “abriu porta para a variância com desApercebido”, que é “muito usual como ‘não percebido, não notado’ – ou seja, variante mórfica de despercebido” (2010, p. 114 e 118).


Soma-se a Luft o gramático Júlio Nogueira, que nos anos 50 observava que, “apesar disso, a diferença vem sendo disciplinarmente respeitada. Êrro, porém, não há. Pode-se dizer: passou desapercebido ou despercebido. E kif kif, com dizem os árabes” (1956, p. 36).


De qualquer forma, prevalece na sociedade a visão utilitarista da língua: manda quem prescreve; obedece quem quer passar em concurso. O concurseiro e o vestibulando precisam obedecer aos arautos da norma-padrão para garantir sua aprovação; o revisor de texto poderá ter sua competência questionada se não atentar para essa distinção em suas correções. Todavia, parece inútil tentar policiar e contrariar a sinonímia, já que a própria língua não faz nenhum esforço em atentar para a artificial distinção que acaba passando des(a)percebida.

0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo

Comments


bottom of page